Memórias de um Sítio Parte I
Se a infância exige recordações, não hesite: se entregue à nostalgia e ao riso desenfreado das vergonhas vividas
É necessário bastante zelo ao se afastar da infância, de modo a evitar deixar que as histórias e aventuras desse período caiam no esquecimento. Caso isso aconteça, as narrativas podem se transformar primeiro em imagens turvas e progressivamente em meras sensações sobre o passado. E, apesar de a nostalgia não exigir muitas descrições para ser absolutamente desfrutável, é uma sorte imensa poder contar com uma precisão de personagens e enredos e desfechos.
Durante um longo período da minha infância existia um sítio onde todo o nosso grupo de amigos se encontrava durante os feriados. Era uma espécie de recanto mágico, um oásis, um país das maravilhas, um lugar onde éramos nossas versões mais imaginativas, criativas, sarcásticas e livres. Vivemos tantas presepadas ali, que nos anos seguintes de pré adolescência, eu, Megan e Ju gostávamos de passar horas a fio rememorando essa época e rolando no chão de tanto rir.
Por conta desse hábito, conseguimos preservar em nossas memórias os menores detalhes sobre a Era do Sítio.
Em Caso de Dúvida, Evite a Ofensiva
O Carnaval no sítio era uma insanidade. Não havia lei, policiamento, justiça e, uma vez atacado por inimigos, não havia proporcionalidade na revanche. Era a fase do ano em que mais amigos se uniam a nós na viagem, e a explosão demográfica levava à uma anarquia geral.
Lei da natureza: quando você junta 50 garotos e 3 meninas num mesmo lugar e todos eles têm menos de 12 anos, haverá desentendimentos e formação de quadrilhas rivais beirando ao crime organizado. Não que não nos déssemos bem com os meninos, mas meninos são meninos, e meninos de 10 anos são meninos de 10 anos. E meninos de 10 anos com posse de uma bola de futebol são meninos de 10 anos com posse de uma bola de futebol. A eminência de conflito era evidente e bastava um pequeno ato de provocação para o caos se estourar.
Era um belo dia ensolarado quando estávamos todos na piscina e começamos a nos desentender. Somando as centenas de crianças com todas as boias infláveis presentes, a piscina estava cheia ao ponto de não conseguirmos enxergar claramente a meio metro de distância. Os meninos viram um copo meio cheio dessa situação e aproveitaram a multidão para brincar de polícia e ladrão aquático. Falharam, porém, ao cometeram o erro tático de excluir nós, meninas, da brincadeira. Pois sabe-se como amadurecemos mais rápido, e como isso nos propicia maiores habilidades de vingança. Ao subestimarem a nossa capacidade militar, o pelotão masculino tomou a terrível decisão de partir para a ofensiva silenciosa.
Dada a largada eu, Megan e Ju iniciamos a Operação Terra Arrasada. Nos espalhamos pelos cantos da arena e usamos de todas as estratégias disponíveis para derrotar fisicamente, mentalmente e moralmente o inimigo: derrubamos os garotos de cima das boias, mergulhamos na frente dos que estavam usando óculos de natação para bloquear a visão e impedir comunicação entre eles, pegamos os macarrões e criamos barreiras para destruir rotas de escape.
A rivalidade estava formada para além da piscina e tiveram ocorrências de ações beligerantes em outros espaços públicos do sítio. Para lidar com a crise o grupo opositor elegeu um líder, e sua atitude central foi criar, na mente da sua tropa, uma imagem distorcida sobre quem eles estavam lutando. De reivindicadoras de equidade de direitos, nós meninas passamos a ser ser vistas como arruaceiras sem propósito político. Consequentemente, a lavagem cerebral fazia com que a maioria dos meninos mudasse a forma como nos tratava toda vez que o dirigente entrava no recinto.
Dentre os planos de ação do nosso pelotão feminino, gostávamos especificamente de nos utilizar do roubo e furto de objetos de valor. Se eles jogavam uma partida de futebol, então nos embrenhávamos escondidas, corríamos até o centro do campo e pegávamos a bola. Mas, claro, depois de nossas iniciativas não terem o resultado desejado, isto é, a inclusão nos jogos deles, decidimos partir para uma estratégia de melhor eficácia, apesar de ilegal de acordo com as convenções de guerra. Identificamos, dentre os garotos, aquele mais simpático à nossa causa. Passamos a exigir informações confidenciais dele e, sem sua permissão, o transformamos em nosso espião. Com sua cooperação, dentro de pouco tempo conseguimos uma trégua nos combates. Era um belo dia ensolarado quando todo mundo voltou a brincar junto.
Se é água para os cavalos, então que nos abstenhamos dos ET’s e das Tarântulas
Havia uma grande piscina de cavalos sendo construída ao lado do haras. Fomos visitar o local quando ele ainda estava sendo construído e, na ausência de água, era apenas um buraco retangular e acimentado impressionantemente grande no meio do terreno. Era uma noite fria, e a escuridão do campo, somado ao silêncio da natureza e à imensidão do horizonte ao redor do sítio, tornava o cenário propício a filmes de terror.
Adentramos a profundidade do espaço retangular até chegarmos ao seu centro. As quatro altas paredes que nos circundavam tinham um aspecto fantasmagórico. Me virei para a Ju para comentar sobre isso e ela, que carregava nos braços uma lanterna profissional de acampamento maior que a sua cabeça, apontou-a para o céu preto e começou a acender e a apagar a sua luz repetidamente.
“O que você tá fazendo?”- eu pergunto inocentemente
“Estou convocando os Ets.” - ela respondo calmamente
Ficamos em silêncio. Miro o breu do céu e observo o longínquo efeito das piscadas incandescentes. ‘Tsc, essa coisa de chamar Et não existe, que bobagem’, penso, ‘Mas é de se admirar quanta estrela há lá em cima, o Universo é tão vasto... será possível garantir com certeza que não há possibilidade de vidas além daqui na Terra? E todos aqueles filmes sobre a invasão dos extraterrestres e a eliminação dos seres humanos? Será que devemos ficar brincando de “chamar ets”? E se eles se enfurecerem e virem nos reprimir? Ou, pior, acharem que estamos chamando-os de boa vontade?
Um desespero percorre minhas veias e com um grito seguro as mãos da Ju, de modo a apontar a lanterna para o chão.
“JULIA, PARA COM ISSO! ELES VÃO VIR PEGAR A GENTE!”
Gostaria de dizer que, depois desse episódio de quase contato alienígena, tivemos uma experiência mais agradável à tal piscina, mas seria desonesto da minha parte. Retornamos meses depois daquela noite, dessa vez quando ela estava cheia de água até o topo. Apesar de a construção ter sido feita para usufruto dos cavalos, nosso grupo de humanos foi o primeiro a fazer uso da obra faraônica. Não confunda: longe de ser um gesto egoísta, nós apenas queríamos certificar de que a piscina estava boa o suficiente para os animais equestres. Tipo um test drive caridoso da nossa parte.
Uma larga rampa de cerca de dois metros de altura guiava a sua entrada, e a maior parte ficava submersa. Enquanto os adultos nadavam, nós crianças nos ocupávamos de uma atividade menos convencional: nos equilibrávamos na borda mais elevada da rampa, subíamos e pulávamos de volta na água. Ríamos e inventávamos poses engraçadas para cada salto, até um dos pais gritar: “Cuidado com essa parede aí mulecada, deve estar cheia de aranhas gigantes andando nas laterais submersas”.
O que era para ser um alerta para tomarmos cuidado, foi, ao contrário, o aviso mais tenebroso. Tínhamos uma imaginação forte na época, porém não o suficiente para suportar a visão de tarântulas peludas caminhando perto de onde nossas mãos se apoiavam no concreto para subir. Ao escutarmos isso, nossas entranhas coletivamente se reviraram e nosso senso de diversão evaporou.
Eu estava me erguendo da parede para mais um salto, quando parei e lentamente assimilei o que ouvi. Tirei minhas mãos do concreto e as levantei para o alto, virei 180°, caminhei rampa acima e saí da piscina, tremendo traumatizada. Todas as crianças fizeram o mesmo em marcha, sem pensar, falar ou pestanejar. O coitado do mensageiro do apocalipse ficou olhando confuso para essa cena, não entendendo o real efeito das suas palavras e o porquê de a brincadeira ter acabado tão repentinamente. Desnecessário complementar que nunca mais tivemos interesse em nadar ali. Para a alegria dos cavalos, cuja liberação do parque aquático permitiu a organização de seus eventos sociais.
Você pode sair sem deixar um comentário. Mas deveria pensar se isso é um gesto moral ou ético, levando em consideração que existe uma autora por trás desse texto em busca de compaixão. Ass: amiga da autora.
os ets ainda estao chegando aguarde
Q SAUDADE